Por Mauro
Lopes, editor do 247 e dos Jornalistas pela Democracia - A expectativa quanto ao
nascimento de Jesus Cristo alimentada por séculos em Israel foi completamente
frustrada. Esperava-se um Messias -título do rei ideal esperado, que seria
Ungido no Templo pelo sumo sacerdote. Nasceu um bebê pobre, em solidão, saudado
apenas por uns pastores mal-cheirosos e vistos como suspeitos pela sociedade.]
É isto,
exatamente, o que nos informam as duas principais leituras das missas e
celebrações da noite de Natal dos católicos, anglicanos e de outras
denominações -trechos dos livros do profeta Isaías e do evangelista
Lucas.
O tema do
nascimento de Jesus não diz respeito apenas à história ou à fé. Ele lança luz
sobre as diferentes visões de Jesus na sociedade. Os fundamentalistas cristãos
são vinculados à expectativa alimentada em Israel e não ao relato que nos fazem
os Evangelhos. Outra corrente de aparência “piedosa” alimentou durante séculos
uma versão higienizada de um Jesus loiro e de olhos azuis que recomendava
benemerência em vez de amor.
Nos
tempos que escorrem, a versão fundamentalista tem consequências concretas -e
dramáticas- pois transforma Jesus num “cruzado” cuja missão seria combater os
“infiéis”: os muçulmanos, o candomblé, a umbanda, os comunistas e até os
cristãos que não seguem sua cartilha.
O que nos
informam os textos?
A
primeira leitura (Isaías 9, 1-6) diz-nos que era esperado um menino ao qual
estavam destinados os títulos de Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte,
Pai-para-sempre e Príncipe da Paz (Is 9, 5 -na versão da Bíblia de Jerusalém).
Que títulos eram esses? Eles integravam o protocolo para a coroação do
faraó (rei) do Egito à época. Títulos de poder e riqueza, portanto.
Esperava-se
um Messias em 736, ano desse trecho de Isaías, a livrar o Reino do Norte da
ameça terrível que o rondava, o da invasão imperialista da Assíria -á época,
Israel estava dividido em dois reinos, o do norte, Judá, e o do sul, Israel. A
invasão acabaria acontecendo pouco depois. O texto referia-se à espera do filho
do rei Acaz, capaz de livrar o reino do terror assírio, e tornou-se uma
das principais referências para o Messias ansiado ao longo dos séculos.
E Lucas?
O texto lucano frauda completamente tal expectativa. A cena utilizada na
liturgia do Natal é Lc 2, 1-14.
No trecho
selecionado, descreve-se o nascimento de Jesus tendo como pano de fundo um fato
de dimensões globais, o recenseamento “em todo o mundo habitado” (v.1), porção
do planeta dominada por Roma, com objetivo de mensurar sua dimensão humana e
estabelecer os parâmetros para a tributação. Os historiadores negam que
tal recenseamento tenha ocorrido -no máximo, teria havido à época uma contagem
restrita à região da Judeia. O redator do Evangelho buscou, com a extrapolação,
contrapor um fato de dimensões universais ao nascimento de um bebê pobre,
escondido na periferia do império.
Em função
da contagem da população, marido e mulher, grávida, foram a Belém, cidade da
família de José. Chegaram na casa de parentes de José e como “não havia um
lugar para eles na sala” (v.7), arrancharam-se no estábulo. O menino
nasceu e foi colocado no comedouro dos animais, a manjedoura forrada com palha.
O
primeiro aspecto que chama atenção para a cena, além do ambiente de pobreza que
em nada lembra o que seria razoável para o aguardado “Conselheiro-maravilhoso”,
é a solidão completa de José, Maria e seu bebê. Pouco versículos antes, Lucas
descrevera o nascimento de João, filho de Zacarias e Isabel, que se tornaria
anos depois o Batista. Mãe, pai e filho foram cercados pela atenção, carinho e
alegria dos “vizinhos e parentes” (Lc 1, 58). É um fato importante para o
redator do Evangelho. Se não fosse, não estaria lá. Por isso, é impactante o
contraste com o nascimento de Jesus. José e Maria estavam hospedados na casa de
parentes. Mas ninguém foi ao estábulo para ver o beber e saudá-los. Sozinhos.
Quem
aparece? A escória. Um grupo de pastores (v, 16) malcheirosos, vindos diretamente
de sua atividade de lida com o rebanho. Quem eram os pastores no contexto da
sociedade em Israel à época? Eram vistos como tipos mais que suspeitos,
ladrões, enganadores e pecadores. Eram desconsiderados, ridicularizados pelos
fundamentalistas de então (o grupo dos fariseus) porque não seguiam as
prescrições da Torá -eram 613 regras! Vivendo no campo, ao relento, os pastores
não obedeciam os rituais que regulavam a vida religiosa, social e legal do
judaísmo.
Eram os
perfeitos “zé-ninguém”. Como os pobres de hoje, em especial numa sociedade com
as elites pautadas pelo sentimento escravocrata, como o caso brasileiro.
Pois é
essa a gente que foi admirar e saudar a chegada do Menino pobre. A cena nada
tem de idílica e adocicada, ao contrário das versões do cristianismo
falsificado. Imagine o odor de um estábulo. Imagine agora o odor nesse estábulo
quando adentra um grupo de pastores fedidos. Esta é a cena que está no texto -e
não outra.
Eram
gente como os sem terra, os sem teto, os refugiados, os pobres das periferias,
os sem-nada do Brasil. Não possuíam direitos civis -pode parecer um escândalo
esta frase, mas não é a situação dos sem nada atualmente? Um ditado rabínico
popular à época dizia: “Nenhuma classe no mundo é tão desprezível quanto a
classe dos pastores”. Não é este o sentimento das elites em relação aos sem
terra, sem teto e outros? Não os consideram “vagabundos” e “desprezíveis”.
Como os
ricos e poderosos reagiram ao nascimento de Jesus? Lucas não nos informa, mas
no Evangelho de Mateus há uma descrição minuciosa (Mateus, 2, 1-18). Quem era,
na sociedade judaica à época, o símbolo do poder e da emanação da riqueza? O
rei Herodes. Não era o Trump (esse era Otávio Augusto, o imperador romano). Era
alguém como um Bolsonaro.
Chegaram
ao palácio de Herodes uns viajantes meio amalucados, astrólogos, que o texto
designa como “magos”, afirmando que havia nascido “o rei dos judeus” (v.1).
Herodes ficou “alarmado” (v.3) e os enviou a Belém, terra onde as profecias
indicavam o nascimento do Messias. Mandou que na volta o procurassem de novo
com um relato sobre o bebê, “para que eu também vá homenageá-lo” (v. 8). Seu
plano era bem outro. Os astrólogos tiveram uma intuição (“avisados em sonho” –
v.12) de qual era a real intenção de Herodes e voltaram a seu país por outro
caminho.
Herodes,
“enfurecido” (v.16) reagiu como os ricos e poderosos de todos os tempos:
“mandou matar, em Belém e em todo seu território, todos os meninos de dois anos
para baixo”. José, que entendera o risco que corria seu bebê (v.13.14),
escapara para o Egito antes do massacre.
O Jesus
do relato dos Evangelhos foi admirado e saudado pelos sem terra, sem teto,
pelos periféricos e periféricas, representados pelos pastores. Os ricos e
poderosos, simbolizados por Herodes, reagiram com ódio, medo e violência. Tem
sido assim ao longo da história.
A
liturgia do Natal captura esse ambiente de contraste entre a pobreza-saudação
dos marginalizados ao bebê nascido no estábulo e a violência que o cerca.
E depois?
O que
seria de se esperar num cristianismo de confrontação, que celebra a chegada de
um cruzado ou de um cristianismo idílico? Que nos dias seguintes ao nascimento
do bebê fossem apresentadas cena de vitória, como um desfile militar ou, no
caso do “cristianismo água-com-açúcar”, cenas de alegria em tons pasteis.
Mas não é
isso que acontece. Os pontos altos da liturgia dos dias seguintes ao nascimento
de Jesus são: o assassinato de Estevão, membro das primeiras comunidades
cristãs, apedrejado em Jerusalém (dia 26), e o massacre dos meninos ordenado
por Herodes (dia 28).
Quem
captou com profundidade o sentido do nascimento de Jesus à luz desse roteiro
litúrgico foi Edith Stein, mártir do povo judeu, mística e profeta assassinada
na câmara de gás em 9 de agosto de 1942 em Auschwitz .
Ela
escreveu dez anos antes de sua morte e três anos antes de se tornar monja
carmelita, uma conferência sob o título “O Segredo do Natal”*. Separei dois
parágrafos crucias e tragicamente belos:
“Quando
os dias ficam cada vez mais curtos, quando caem os primeiros flocos de neve
(normal, no inverno alemão), então surgem suavemente os primeiros pensamentos
natalinos. Destas simples palavras emana um encanto ao qual é difícil um
coração ficar indiferente. Mesmo os que têm uma fé diferente, ou os infiéis,
para os quais a antiga história da criança de Belém nada significa, preparam-se
para a festa e pensam, em como acender um raio de alegria em toda parte. É como
uma correnteza quente de amor perpassando toda a terra, meses e semanas antes.
Uma festa de amor e de alegria. (…)
Cada um
de nós talvez já tenha experimentado tal felicidade natalina. Mas, até aqui, o
céu e a terra não se uniram. Também hoje a estrela de Belém é uma estrela na
noite escura. Já, no segundo dia, a Igreja tira as vestes festivas e se reveste
com a cor do sangue e, no quarto dia, de cores enlutadas. Estêvão, o
protomártir, que primeiro seguiu o Senhor para a morte, e os santos inocentes,
as criancinhas de Belém de Judá, mortas cruelmente por mãos de algozes, estão ao
redor da criança no presépio. O que quer dizer isto? Onde está o júbilo das
potências celestes? Onde está a tranquila bem-aventurança da noite santa? Onde
está a paz na terra? ‘Paz na terra aos homens de boa vontade’. Mas, nem todos
têm boa vontade”.
Para
encerra, socorro-de de padre Júlio Lancellotti, responsável pela Pastoral do
Povo da Rua em São Paulo e hoje uma referência de compaixão que ultrapassa em
muito as fronteiras do catolicismo. Ele enviou por seus perfis nas redes
sociais uma mensagem de Natal escrita originalmente pelo biblista italiano
Fernando Armellini. Ela resume o mais exato sentido do nascimento de Jesus:
A imagem
da manjedoura é o questionamento decisivo que Deus, o Deus e Pai de Jesus
Cristo, faz a cada homem e mulher de todos os tempos:
“Se vocês
procuram um Deus forte, potente, esplendoroso, glorioso, procurem outro; não
sou eu!”
________________
* Edith
Stein, O Segredo do Natal, Editora da Universidade do Sagrado
Coração, Bauru, 1999, p. 11.15
https://www.brasil247.com/pt/blog/91/378479/Jesus-beb%C3%AA-pobre-visitado-pelos-sem-nada-e-perseguido-pelos-poderosos.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário