Ação no
STF pede inconstitucionalidade de outorgas concedidas a emissoras controladas
por políticos; Radiodifusores eleitos também precisariam abandonar o controle
de emissoras antes de tomar posse.
Nesta segunda reportagem da série sobre os “coronéis da mídia”, vamos
mostrar o que diz a legislação brasileira sobre o controle de emissoras de rádio
e televisão por políticos e o que pode e vem sendo feito pelas organizações de
defesa do direito à comunicação acerca das ilegalidade praticadas.
Desde 2011, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação, intitulada
Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), elaborada pelo
Intervozes, em parceria com o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que pede a
declaração de inconstitucionalidade à concessão de outorgas de radiofusão a
emissoras controladas por políticos. A arguição - “acusação”, para desembrulhar
o juridiquês, também afirma que, desde a posse, os parlamentares não podem mais
ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor
decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer
função remunerada. Assim, defende como inconstitucional o ato de posse desses
radiodifusores eleitos, pelo fato de os mesmos não terem deixado, antes, o
controle de suas emissoras.
A base da ADPF 246 é o artigo 54 da Constituição, que aponta, em seus
dois primeiros parágrafos, como fundamento da República, que deputados e
senadores não podem firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito
público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa
concessionária de serviço público. Além deste artigo, a ação também entende que
a prática do coronelismo eletrônico viola o direito à informação (artigo 5º e
220 da Constituição Federal), a separação entre os sistemas público, estatal e
privado de comunicação (art. 223), o direito à realização de eleições livres
(art. 60), o princípio da isonomia (art. 5º) e o pluralismo político e o
direito à cidadania (art. 1º).
Além da Constituição Federal, o artigo 38 do Código Brasileiro de
Telecomunicações, principal lei de rege o setor, aponta, em seu parágrafo
primeiro, que não pode exercer a função de diretor ou gerente de
concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem
esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial.
No entanto, a ADPF cita mais de 40 deputados federais e senadores, da
atual legislatura, que controlam diretamente pelo menos uma emissora de rádio
ou televisão em seu estado de origem. A tese da ação aponta diferentes órgãos
como responsáveis pela ilegalidade. Em primeiro lugar, o Ministério das Comunicações
e a Presidência da República, por concederem outorgas a empresas que não
poderiam recebê-las e pela omissão na fiscalização das emissoras; o Congresso
Nacional, também responsável pela autorização e renovação das outorgas e pela
diplomação dos parlamentares; e o Poder judiciário, também responsável pela
diplomação de candidatos eleitos.
O STF ainda não se manifestou sobre o tema, mas já coletou a
manifestação dos órgãos envolvidos. Em parecer enviado ao Supremo, o Senado
afirma que o entendimento de sua Comissão de Constituição e Justiça é de que os
contratos de concessão e de permissão de radiodifusão enquadram-se na
incompatibilidade constitucional prevista pelo artigo 54, II, “a”. Deputados e
senadores não poderiam, portanto, ser proprietários e controladores de pessoas
jurídicas prestadoras do serviço de radiodifusão pois estas gozam do benefício
decorrente da celebração de contrato com pessoa jurídica de direito público –
no caso, a União.
Em parecer sobre a ADPF solicitado pelo Intervozes aos juristas Gilberto
Bercovici, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e
Airton Serqueira Leite Seelaender, professor adjunto da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, eles afirmam que o ordenamento jurídico
brasileiro deixa claro que há um dever estatal de impedir a oligarquização do
regime democrático, de combater a oligopolização do setor e fomentar o
pluralismo na mídia, destacando “a importância de preservar o dissenso na
radiodifusão”. Bercovici e Seelaender afirmam que as práticas expostas na
denúncia apresentada ao STF representam “clara burla à Constituição”.
A posição da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério
Público Federal (MPF), também é de que os detentores de mandatos não podem direta
ou indiretamente ter vínculo societário em empresas que detêm concessão de
radiodifusão.
“Sem meias palavras, uma das grandes tragédias da comunicação social no
país é o fato dos parlamentares terem o controle gerencial dessas empresas. É
um poder que retroalimenta o controle político”, pontua o procurador Regional
da República no Rio Grande do Sul, Domingos Sávio da Silveira. “O que me parece
mais grave é o poder de gestão que esses clãs políticos exercem sobre
concessões [de radiodifusão]. E mais do que isso, como o fato de ser
parlamentar tem ao longo da história feito com que as concessões sejam
dirigidas a empresas que estão sob o controle indireto desses parlamentares”,
acrescenta.
Para Silveira, quando grupos políticos controlam as emissoras acontece a
distorção direta do processo político. “É a falsificação da democracia. A
opinião pública é construída pela mídia. Se frauda a democracia quando, através
da utilização desigual de uma concessão, se consegue uma visibilidade
incomparável em relação aos outros candidatos”, explica.
Debate recorrente
A discussão pública acerca do coronelismo eletrônico não é recente. Na
Câmara dos Deputados, o relatório dos trabalhos da Subcomissão Especial da
Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), criada
para analisar mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação
de concessões, apontou, já em 2007 o conflito de interesses. O documento afirma
que, “como o Congresso Nacional é responsável pela apreciação dos atos de outorga
e de renovação de outorga de radiodifusão, a propriedade e a direção de
emissoras de rádio e televisão são incompatíveis com a natureza do cargo
político e o controle sobre concessões públicas, haja vista o notório conflito
de interesses”.
A Deputada Luiza Erundina (PSB-SP), no entanto, que presidiu a
Subcomissão, constata a dificuldade de se fazer cumprir tal compreensão,
justamente porque o número de parlamentares que, de forma ilegal e
inconstitucional, são detentores de concessões de rádio e TV ainda é elevado.
“E eles têm seus prepostos, seus representantes, na Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara e do Senado, o que explica a
dificuldade que há em se avançar minimamente em relação a esse marco legal”,
diz.
Em 2010, o então ministro chefe da Secretaria de Comunicação Social da
Presidência da República, Franklin Martins, também afirmou a
inconstitucionalidade do controle de outorgas de radiodifusão por políticos. De
acordo com ele, “criou-se terra de ninguém. Todos sabemos que deputados e
senadores não podem ter televisão, tem TV e usam de subterfúgios dos mais
variados”.
Na mesma linha, em janeiro de 2011, o Ministro das Comunicações Paulo
Bernardo novamente afirmou que já existe uma restrição que está colocada na
Constituição: “É o Congresso que autoriza as concessões. Então, me parece claro
que o congressista não pode ter concessão, para não legislar em causa própria.
Os políticos já têm espaço garantido na televisão, nos programas eleitorais. E
há também a vantagem nas disputas eleitorais, e o poder político e econômico”.
O Ministério das Comunicações, no entanto, deu continuidade à sua política
histórica de ignorar o artigo 54 da Constituição Federal e conceder outorgas de
radiodifusão para empresas controladas por políticos.
Questionado pela nossa reportagem sobre o tema, o Ministério pediu que
as perguntas fossem enviadas por e-mail. Perguntamos: Como o Ministério das
Comunicações interpreta o artigo 54 da Constituição em relação às concessões de
radiodifusão? Cabe ao Ministério das Comunicações a sua fiscalização? Se sim,
quais são os canais de denúncia disponíveis à população? Se não cabe ao
MiniCom, de quem deveria ser a responsabilidade por fiscalizar as emissoras
controladas por políticos? O Ministério considera o atual quadro de trâmite de
outorgas problemático? No entendimento dos gestores do Ministério, a legislação
precisa de atualização? Até o fechamento desta reportagem, o Ministério das
Comunicações não havia manifestado seus posicionamentos.
Laranjas e celebridades
Comprovar o controle de uma emissora de rádio ou TV por políticos não é
tarefa simples. Os casos mais óbvios – mas também mais raros – são aqueles em
que o próprio registro de acionistas da empresa concessionária inclui o nome do
parlamentar, prefeito ou governador. Mas o coronelismo eletrônico tem muitas
faces. De acordo com Domingos Sávio da Silveira, operam hoje no Brasil diversas
formas de controle indireto da radiodifusão. Além dos chamados laranjas, usados
para esconder o nome do verdadeiro dono da emissora, há casos de políticos que,
mesmo sem serem proprietários da empresa, são capazes de acumular poder
midiático e usar o espaço do rádio e da televisão como fonte de poder pessoal.
“É o exemplo dos comunicadores candidatos e dos parlamentares
comunicadores, que passam os quatro anos de seu mandato retroalimentando sua
atuação, que deveria estar no Congresso, às vezes até sem receber e, outras
vezes, alugando ou arrendando espaços nos meios de comunicação. É uma relação
desigual. A celebridade candidata também frauda o processo democrático”,
explica Silveira.
Questionado pela reportagem, o Tribunal Superior Eleitoral declarou que
“a Lei das Eleições só se refere aos permissionários públicos quando os proíbe
de fazer doações”. Contudo, o TSE indica o Ministério Público Eleitoral para
representações: “Quanto a denúncias, o Ministério Público Eleitoral é parte
para oferecê-las à Justiça Eleitoral”, informou a assessoria de imprensa da
instituição.
Para o procurador Domingos Sávio da Silveira, a sociedade deve procurar
o Ministério Público Federal para denunciar possíveis casos de uso indevido de
concessões públicas que podem interferir no processo eleitoral. Ele acredita
que iniciativas como a ADPF 246 e demandas individuais e pontuais que podem ser
delatadas não devem ser entendidas como “censura”, como colocam-se os
opositores a todo e qualquer tipo de regulação da mídia. “Seria muito bom que
toda a sociedade fizesse representações. É preciso provocar em cada local um
processo de aplicação democrática da Constituição, de construção da igualdade.
Essas ações têm poder pedagógico”, condui.
>Carlos
Gustavo Yoda é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de
Comunicação Social – www.cartacapital.com.br
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